quinta-feira, 17 de abril de 2008

Trabalho, Labor, Ação por Hannah Arendt

Trabalho, Labor, Ação
Na produção, tudo existe para o bem da obra. Todas as suas etapas conduzem à obtenção de um resultado. Por essa razão, o critério da instrumentalidade rege todo o processo. Do ponto de vista das características temporais, a atividade produtiva é bem delimitada - ela começa com a intervenção do produtor, com seus instrumentos, em uma matéria dada, e prossegue, de forma contínua, até atingir sua meta - a realização do produto. O trabalho é uma atividade que pode ser planejada, já que todos os seus passos são previsíveis. Sob o aspecto quantitativo, ele pode ser realizado de forma solitária, pois o que conta é a relação do produtor com sua obra. Se é verdade que o processo produtivo pode ser claramente delimitado por um início e por um fim, seus produtos, por sua vez, constituem um mundo dotado de durabilidade. Eles podem subsistir por muito tempo depois de cessado o processo que os produziu. Também é verdade que todo resultado do trabalho é destrutível - uma cadeira pode ser queimada e um edifício pode ser posto abaixo. Entretanto, o ideal que aspira a atividade produtiva é de legar ao mundo resultados duradouros. Por esta razão, a obra de arte constitui o paradigma do produto do trabalho - até cuidamos dela para que possa atravessar os séculos. Foi a capacidade de produzir bens duráveis que motivou a simpatia dos filósofos pela fabricação. Eles pretendiam, por meio de suas investigações, ter acesso a um bem que pudesse durar para sempre - o ser. Sua pergunta era: "Existe algum bem cuja durabilidade exceda a de qualquer produto do fazer humano? Todas as principais noções pensadas pelas várias filosofias foram respostas a essa indagação - a idéia, em Platão, a substância, em Aristóteles, Deus, para os filósofos medievalistas, a consciência, para os filósofos modernos, as leis da História, a luta de classes, o inconsciente freudiano.
Em contraste com os produtos duráveis do trabalho, os objetos do labor - os bens de consumo - são perecíveis. A distinção entre o labor e o trabalho foi ignorada pelos teóricos, mas não pela linguagem comum. Sabemos, por experiência, que o labor do nosso corpo não é o trabalho das nossas mãos. Necessitamos, para nos mantermos vivos, da obtenção e do consumo de alimentos e de outros bens que asseguram nossa inserção no ciclo vital. Enquanto o trabalho constrói um mundo de objetos duráveis, o labor lida com coisas que, uma vez obtidas, logo desaparecem, ao serem engolfadas pelos processos naturais. Do ponto de vista das características temporais, o labor é incessante e sua duração determinada pelo ciclo biológico; ele dura o tempo da vida dos indivíduos de uma dada espécie...
...As potencialidades humanas permaneceram, até agora, inalteradas, o que justifica a elaboração de uma fenomenologia da vida ativa, mas as condições em que elas se realizam alteraram-se profundamente. O homem continua a ser um animal laborans, mesmo que a expansão do labor se apresente, na atualidade, como uma ameaça para a integridade dos processos produtivos. Merecemos, ainda, ser chamados de homo faber, embora a aplicação das regras do fazer se circunscreva, cada vez mais, ao restrito domínio das artes. Somos, ainda, capazes de agir, isto é, podemos iniciar processos inéditos e imprevistos, se bem que isso aconteça, atualmente, de forma muitas vezes chocante, no campo das novas tecnologias: nos experimentos com a energia atômica, na engenharia genética e na cibernética.
Iniciar processo...Uma exposição do tema da ação deve partir da consideração desse aspecto! A ação é a única das atividades humanas com o poder de iniciar algo novo. O labor é repetitivo, desdobra-se em um curso rotineiro, no qual nenhum momento se destaca. O trabalho é organizado com o objetivo de obter determinado resultado - um produto. Suas etapas se sucedem em uma ordem progressiva e previsível. No domínio da ação, cada acontecimento tem um caráter inaugural. A ação tanto contrasta com a monótona rotina do labor quanto rompe com a ordem sucessiva do trabalho. Dada a sua imprevisibilidade, a ação representa algo de milagroso. Ela é um segundo nascimento. Como todo nascimento, faz irromper no mundo uma presença inteiramente nova. A ação é instantânea e explosiva. Daí o motivo de nos referirmos, com freqüência, ao seu brilho e à sua grandeza.
O processo do trabalho converge para o produto - uma coisa ou um "quê". A ação provoca o aparecimento não de um "quê", mas de um "quem" - a personalidade de alguém. Agir tem o poder de revelar uma individualidade. Esta não coincide com as habilidades, as riquezas ou a posição de um indivíduo, mesmo que, muitas vezes, nosso vocabulário nos induza ao equívoco de dizer o "quê" alguém é. A personalidade, embora visível, é intangível; impõe-se por sua presença, não por algum atributo específico. A identidade de uma pessoa transcende tudo o que ela possa fazer ou produzir - esse é um elemento indispensável da dignidade humana.
A visibilidade de quem age depende da presença de outros agentes, isto é, da existência de uma teia de relações. A ação só se realiza em um contexto de pluralidade. Isso remete ao significado do nosso nome próprio, que nos é dado, e que não usamos quando estamos sozinhos. Seu caráter unívoco só é percebido pelos outros, que o fixam e o identificam. A pluralidade humana sobre a qual repousa a ação é composta, ao mesmo tempo, de indivíduos iguais e diferentes. A igualdade é uma condição para o ingresso na esfera da ação. As diferenças individuais destacam-se no intercâmbio entre os diversos agentes.
Enquanto os produtos da fabricação são destrutíveis, os efeitos da ação são irreversíveis. A iniciativa de uma gente repercute sobre as ações de muitos outros, que multiplicam, de forma indefinida, o seu efeito. Vista da perspectiva do tempo, a ação é a mais fugaz das atividades e, paradoxalmente, é a que mais pode se prolongar. A fugacidade tem a ver com o caráter instantâneo da ação, e sua longa duração com o fato de que a iniciativa de um agente repercute sobre as ações de muitos outros. Muitas vezes, precisamos esperar muitos anos até que sua série se esgote, e que possamos contar, em uma história, o seu significado.
Como se pode perceber, a imprevisibilidade faz parte da própria natureza da ação. A ela se associa a dimensão milagrosa do agir humano; ela explica também o contraste com as formas produtivas da atividade humana, todas previsíveis. O único meio de que dispomos para lidar com o caráter imprevisível da ação é o poder de prometer. A promessa apresenta-se como um recurso para contrabalançar essa imprevisibilidade, pois partilha com o agir a mesma natureza - ela depende apenas da iniciativa dos homens. A ação, por ser imprevisível, nunca é totalmente segura, diferentemente dos procedimentos produtivos sempre muito tangíveis. Também a irreversibilidade constitui um traço essencial do agir humano. Diferentemente dos processos produtivos que podem ser desfeitos, tudo que depende da iniciativa do agir humano é irrevogável. Nenhum gesto ou palavra de qualquer agente pode alterar o que passou. O único recurso disponível para enfrentar a irreversibilidade da ação é o perdão. Perdoar não significa anular o efeito de uma palavra proferida ou de um gesto já realizado, mas é a manifestação do poder de iniciar um novo processo. "
Hannah Arendt

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